Antonio Candido e a “formação”
Universalidade, cultura e educação

Leandro Konder

        O que nós costumamos designar como “cultura universal” é o conjunto daquilo que as culturas particulares produzem de mais universal, isto é, a soma das expressões nas quais elas se tornam mais acessíveis, mais compreensíveis umas para as outras. E, pela comparação, cada uma se torna mais compreensível para si mesma.
        Na cultura, o sujeito é singular, mas depende do outro (da alteridade) para apreender na diferença sua identidade. Sou quem sou porque não sou igual a este que não é igual a mim.
        Alo, no entanto, temos em comum: se não, não teria como comunicar-me com ele. O movimento da cultura, tal como o movimento da linguagem, é um movimento de universalização.
        A universalidade absoluta é inconcebível em escala humana. E a absoluta singularidade seria um desastre. De fato, a vida de cada cultura particular é um esforço constante no sentido de se universalizar, no dialogo com outras culturas, na ampliação de seus horizontes.
        A efetiva universalidade não é e nunca será um modelo a ser adotado por algum “modismo” cultural. Não é e nunca será a capitulação pura e simples ao “cosmopolitismo” superficial das imposições imediatas do mercado mundial. Podemos talvez caracterizá-la como a direção em que sujeitos individuais e coletivos se movem quando conseguem superar o domínio da autocontemplação narcísica e/ou o autoembevecimento provinciano.
        Para podermos nos defender das pressões alienantes daqueles que controlam o mercado mundial e tiram o maior proveito da atual onda da “globalização”, não devemos nos satisfazer com brios artificiais ou com arroubos patrióticos ingênuos. Não devemos nos aferrar a uma auto-imagem idealizada.
        E é nesse sentido que Antonio Candido nos dá uma magnífica lição em seu livro Formação da Literatura Brasileira, publicado em 1958.
        De uma perspectiva histórica, o crítico se debruça sobre o seu objeto evitando tanto superestimá-lo como subestimá-lo. Recorre a uma curiosa combinação de simpatia e desconfiança, de paciência e humor. Para ele, qualquer excesso de otimismo resulta em dolorosa decepção; e qualquer excesso de pessimismo resulta em desanimo, em desalento, o que não nos ajuda na luta necessária pela transformação da nossa sociedade.
        Antonio Candido parte, provocativamente, de uma ducha fria de realismo, através da constatação de que a literatura brasileira é “galho secundário da portuguesa”, que, por sua vez, é “arbusto de segunda ordem no jardim das musas”.
        Um francês ou um inglês – diz ele – podem se permitir ignorar outras literaturas, porém, se conhecerem bem a literatura deles, já terão uma base cultural respeitável. Um brasileiro que se pretenda efetivamente culto é obrigado a conhecer literaturas estrangeiras. No nosso esforço para nos abrirmos à assimilação de grandes obras literárias de outras culturas, na nossa luta para superarmos estreitezas bairristas, é claro que corremos riscos. Um desses riscos é a perda da auto-estima. Outro é a subserviência na imitação de modelos externos.
        O livro de Antonio Candido se mostra atento para tais riscos. Nele se lê a advertência: “comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e é fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime”.
        “Formação” começa pelo reconhecimento de que, desde muito cedo, houve alguma produção literária na terra colonizada pelos portugueses. Não havia, porém, um “sistema” organizado de produção e consumo da literatura (envolvendo escritos e leitores) numa sociedade que ainda não havia adquirido as características de uma realidade nacional.
        Antonio Candido sustenta que um primeiro “momento decisivo” no adensamento do processo de formação desse “sistema” pode ser isto no século XVIII, no Arcadismo e no Neoclassicismo, onde se acham autores cujas aspirações e cujos temas se ligam às mudanças históricas em andamento.
        Nesse enfoque, a importância do social na literatura é reconhecida, porém ele não é avaliado como um fator ‘externo’, e sim como um fator “interno” da estruturação do texto literário. O social e o estético não se contrapõem como potencias rivais, cada uma delas empenhada em determinar os limites da outra: são duas dimensões mutuamente imbricadas, se valorizando na relação que as liga. Suponho que não será difícil para nós, da área da educação, admitir que a análise do crítico literário, nos termos em que está feita, contribui para nossos esforços no sentido de avaliar as contradições do “sistema” constituído pela educação brasileira.
        Antonio Candido recusa com firmeza abordagens deterministas, críticas feitas do angulo de um reducionismo sociológico, que mostram pouco interesse pela especificidade dos valores estéticos e tendem a reduzir a obra de arte a mero “produto” ou “documento”. Essa recusa, entretanto, não o leva a se aproximar da proposta formalista de uma concentração “exclusiva” no texto, nem o conduz a subestimar o condicionamento histórico.
        Quando fala do século XVIII no Brasil, o autor de “Formação” sublinha os obstáculos postos no caminho da nossa literatura, entre os quais a pressão ideológica-política do conservadorismo: “o nosso foi um século das luzes dominantemente beato, escolástico, inquisitorial”. E a situação criada se expressava numa “revoada de maus poetas e letrados pedantes”. Mas o quadro não impediu que fossem escritos igualmente alguns versos sensíveis e poemas inspirados, graças a poetas como Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga e Manuel Inácio Silva Alvarenga.
        O outro “momento decisivo” examinado no livro é o do Romantismo. Se o Arcadismo trouxe a incorporação de padrões europeus tradicionais, que contribuíram para organizar com alguma eficácia a nossa atividade literária, o Romantismo foi além disso e se destacou por sua vontade consciente de forjar aqui uma literatura independente.
        As novas condições criadas no período do Império ao mesmo tempo viabilizavam e dificultavam o novo movimento de individualização nacional, que se empenhava em combinar o singular (a expressão da nossa realidade) e o universal (os padrões dos países em que nos inspirávamos).
        O quadro histórico se ressentia da falta de um público leitor esclarecido e dotado de uma consciência artística fortalecida, capaz de estimular (ou criticar) os escritores. O “senso de missão” dos românticos não lhes bastava para criarem uma grande literatura. No indianismo, por exemplo, transpareciam muitas ingenuidades. “o espírito cavalheiresco é enxertado no bugre, a ética e a cortesia do gentil-homem são trazidas para interpretar o seu comportamento”.
        As insuficiências eram inegáveis, porém o único meio de supera-las era conseguir aprofundar a compreensão das obras sem desprezá-las, mas resgatando o que tinham de melhor.
        Segundo Antonio Candido, Machado de Assis é quem nos proporciona o melhor exemplo de lucidez não só na sua vocação para a universalidade.
        Na sua compreensão da condição humana, Machado aproveitou autores de todas as proveniências, desde a Bíblia até Schopenhauer, passando por Lawrence Sterne, Pascal e Jonathan Swift. No entanto, a recuperação generosa dos acertos dos que os antecederam em sua própria terra contribuiu para que ele permanecesse independente em relação aos modismos internacionais. “Esse mestre admirável se embebeu meticulosamente da obra dos seus predecessores”. Extraiu elementos dos escritos de Joaquim Manuel de Macedo, de José de Alencar e de Manuel Antonio de Almeida.
        Machado, com sua universalidade, com sua singularidade, funciona como uma chave que ajuda a abrir a “caixa-preta” do desastre nacional.
        E o modo como Antonio Candido nos mostra isso faz do seu livro uma chave para que não só o povo das letras, mas também nós, da educação, possamos nos penar e repensar no movimento que se realiza ininterruptamente entre o cultivo da nossa identidade cultural, singular, e a abertura para o diálogo corajoso com o mundo, com os “outros”.